sofia (
raspberrys) wrote2025-09-13 01:00 am
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Parasita (amar)
Gideão havia adormecido há duas horas, mas eu não conseguia pegar no sono.
Senti minha pele nua sob o cobertor, minha barriga roçando no tecido felpudo, e meu antebraço, na pele ao meu lado. Encarei fixamente o teto, que era iluminado pelas frestas de luz que rasgavam os pequenos vãos na janela.
É a centésima vez que fazemos isso, mas começo a me questionar em qual dezena parei de aproveitar. A pele de Gideão não me parece conter mais nada além de água, ar e ossos que se esfarelam subcutaneamente.
Quando mais nova, pensava que sexo era uma grande bobagem, que não havia sentido se atrair por uma forma física formada por diversas reações químicas constantes e só. É só uma casca, pensava eu, e seu conteúdo permanece dentro do cérebro e da alma. É fútil buscar algo mais profundo em globos reluzentes que, na verdade, são exatamente o que são em matéria. Jurei que jamais viria a me expôr a alguém.
Também acreditava que jamais iria prolongar um relacionamento. Por algum motivo, via a entrega emocional como sinal de vulnerabilidade. Ainda vejo, e é cruel.
Tornei meu olhar ao homem que repousava à minha direita. Seus olhos cerrados lacrimejavam, e seu corpo estava apoiado sobre o quadril e a cintura, voltado para mim. Seu corpo irradiava calor. A mão direita repousava paralelamente à face, e em um dos dedos estava um anel radiante.
Estou com ele há dois anos e, ainda assim, não sei se sei quem ele é.
Se for parar pra pensar bem, na verdade, estou comigo há vinte anos, e ainda não sei quem sou.
Me pergunto quem mudou, quem causou tamanha divergência da relação que havia antes e da que há agora. É estranho, porque ele mesmo não repara nada. Uma vez, o questionei a respeito.
— Tenho a sensação de que estamos nos distanciando.
Gideão me olhou com um olhar curioso.
— Sério? Por que?
— Não te vejo mais. — respondi, baixando o olhar para minhas mãos entrelaçadas. — Falo mais com meus colegas desprezíveis da faculdade que com você. Não temos tempo como antes, e sinto que estou soltando sua mão aos poucos.
Gideon lançou um sorriso. — Bem, eu não acho —, e então deitou sua cabeça sobre meu ombro.
Agora, encarando o rosto adormecido, lamento por não ter nem sequer vontade de vê-lo com a frequência de antes. Embora isso não responda quem é o culpado pela mudança, já que poderia ser simplesmente o acaso das coisas, eu sei que mudei.
Voltei meu olhar ao teto novamente. Parei de aproveitar quando resolvi aproveitar demais a mim mesma. Magnólia havia me tirado de mim, e assim como o sistema imunológico diante de um corpo estranho, passei a exercitar demais meu próprio funcionamento, para que o vírus que ela representava não tomasse tantas células minhas ao ponto que me tornasse inteiramente um hospedeiro por opção.
Para me livrar dela, eu precisei aumentar meu ego. Aumentar meu ego significava diminuir os arredores, calar os ruídos.
Ele era ruído; portanto, o diminui. E lamento profundamente por isso. Mas assim, fiz de mim uma ginasta premiada, começando a ser reconhecida mundialmente por seu talento, embora capaz de perder seu prêmio por um mísero centímetro de distância pisado incorretamente em um elástico ou barra. Um tropeço, e eu tiraria meu glorioso troféu de mim mesma.
Eu era uma estátua divina, detalhada como uma obra renascentista, idealizada como num poema romântico. Mas bastava uma lasca, um erro gramatical, e viraria lixo.
Mas enquanto não fosse, eu era perfeita. E pareceu-me deprimente se prender a uma só casa, uma só vida, um só fruto da figueira quando eu era livre e deveria conceder ao mundo a graça da minha perfeição.
Olhei rapidamente para o lado, e então me descobri aos poucos para levantar da cama.
Ergui-me, tomando cuidado para que a madeira da cama rangesse o mínimo possível, e me vesti em silêncio.
Mais uma vez, encarei, receosa, a face adormecida. Havia algo de gigante nela, uma grandeza silenciada, e a alma guardada sob aquela carcaça algum dia iria supor que ela existe e buscar descobrí-la.
Senti-me hesitante. Contudo, naquele momento, disse a mim mesma, havia de buscar minha glória.
Abri a porta, encarando a pintura imaginária do vasto e indomável oceano no qual embarcava. Deveria ser um sonho de destino, deveria ser o paraíso.
Mas assim que dei um passo à frente, ouviu-se um bocejo. A voz terna que vinha de trás de mim balbuciou meu nome, aquele que tenho há vinte anos — antes de Magnólia, antes de Gideão, antes da mitologia desbravadora, mas que segue comigo em tudo isso, enquanto for eu.
— Camile?
Não posso.
A pintura do horizonte se esvaece em meus pensamentos e, por alguns instantes, tudo é concreto.
Mesmo que pise uns centímetros à frente, mesmo que tenha um dentinho quebrado,
'Camile' está exatamente onde deveria estar.
Exalei o ar que mantive em meus pulmões nesses segundos tão longos e, por fim, ao respirar mais uma vez,
Decidi dar meia-volta.
Senti minha pele nua sob o cobertor, minha barriga roçando no tecido felpudo, e meu antebraço, na pele ao meu lado. Encarei fixamente o teto, que era iluminado pelas frestas de luz que rasgavam os pequenos vãos na janela.
É a centésima vez que fazemos isso, mas começo a me questionar em qual dezena parei de aproveitar. A pele de Gideão não me parece conter mais nada além de água, ar e ossos que se esfarelam subcutaneamente.
Quando mais nova, pensava que sexo era uma grande bobagem, que não havia sentido se atrair por uma forma física formada por diversas reações químicas constantes e só. É só uma casca, pensava eu, e seu conteúdo permanece dentro do cérebro e da alma. É fútil buscar algo mais profundo em globos reluzentes que, na verdade, são exatamente o que são em matéria. Jurei que jamais viria a me expôr a alguém.
Também acreditava que jamais iria prolongar um relacionamento. Por algum motivo, via a entrega emocional como sinal de vulnerabilidade. Ainda vejo, e é cruel.
Tornei meu olhar ao homem que repousava à minha direita. Seus olhos cerrados lacrimejavam, e seu corpo estava apoiado sobre o quadril e a cintura, voltado para mim. Seu corpo irradiava calor. A mão direita repousava paralelamente à face, e em um dos dedos estava um anel radiante.
Estou com ele há dois anos e, ainda assim, não sei se sei quem ele é.
Se for parar pra pensar bem, na verdade, estou comigo há vinte anos, e ainda não sei quem sou.
Me pergunto quem mudou, quem causou tamanha divergência da relação que havia antes e da que há agora. É estranho, porque ele mesmo não repara nada. Uma vez, o questionei a respeito.
— Tenho a sensação de que estamos nos distanciando.
Gideão me olhou com um olhar curioso.
— Sério? Por que?
— Não te vejo mais. — respondi, baixando o olhar para minhas mãos entrelaçadas. — Falo mais com meus colegas desprezíveis da faculdade que com você. Não temos tempo como antes, e sinto que estou soltando sua mão aos poucos.
Gideon lançou um sorriso. — Bem, eu não acho —, e então deitou sua cabeça sobre meu ombro.
Agora, encarando o rosto adormecido, lamento por não ter nem sequer vontade de vê-lo com a frequência de antes. Embora isso não responda quem é o culpado pela mudança, já que poderia ser simplesmente o acaso das coisas, eu sei que mudei.
Voltei meu olhar ao teto novamente. Parei de aproveitar quando resolvi aproveitar demais a mim mesma. Magnólia havia me tirado de mim, e assim como o sistema imunológico diante de um corpo estranho, passei a exercitar demais meu próprio funcionamento, para que o vírus que ela representava não tomasse tantas células minhas ao ponto que me tornasse inteiramente um hospedeiro por opção.
Para me livrar dela, eu precisei aumentar meu ego. Aumentar meu ego significava diminuir os arredores, calar os ruídos.
Ele era ruído; portanto, o diminui. E lamento profundamente por isso. Mas assim, fiz de mim uma ginasta premiada, começando a ser reconhecida mundialmente por seu talento, embora capaz de perder seu prêmio por um mísero centímetro de distância pisado incorretamente em um elástico ou barra. Um tropeço, e eu tiraria meu glorioso troféu de mim mesma.
Eu era uma estátua divina, detalhada como uma obra renascentista, idealizada como num poema romântico. Mas bastava uma lasca, um erro gramatical, e viraria lixo.
Mas enquanto não fosse, eu era perfeita. E pareceu-me deprimente se prender a uma só casa, uma só vida, um só fruto da figueira quando eu era livre e deveria conceder ao mundo a graça da minha perfeição.
Olhei rapidamente para o lado, e então me descobri aos poucos para levantar da cama.
Ergui-me, tomando cuidado para que a madeira da cama rangesse o mínimo possível, e me vesti em silêncio.
Mais uma vez, encarei, receosa, a face adormecida. Havia algo de gigante nela, uma grandeza silenciada, e a alma guardada sob aquela carcaça algum dia iria supor que ela existe e buscar descobrí-la.
Senti-me hesitante. Contudo, naquele momento, disse a mim mesma, havia de buscar minha glória.
Abri a porta, encarando a pintura imaginária do vasto e indomável oceano no qual embarcava. Deveria ser um sonho de destino, deveria ser o paraíso.
Mas assim que dei um passo à frente, ouviu-se um bocejo. A voz terna que vinha de trás de mim balbuciou meu nome, aquele que tenho há vinte anos — antes de Magnólia, antes de Gideão, antes da mitologia desbravadora, mas que segue comigo em tudo isso, enquanto for eu.
— Camile?
Não posso.
A pintura do horizonte se esvaece em meus pensamentos e, por alguns instantes, tudo é concreto.
Mesmo que pise uns centímetros à frente, mesmo que tenha um dentinho quebrado,
'Camile' está exatamente onde deveria estar.
Exalei o ar que mantive em meus pulmões nesses segundos tão longos e, por fim, ao respirar mais uma vez,
Decidi dar meia-volta.